Filosofia e Literatura: O espelho

Atividade baseada na obra: "O Espelho Esboço de uma nova teoria da alma humana" de Machado de Assis

Problema:  É possível produzir conhecimento através de obras literárias?

Tema: "O ser humano é composto de matéria, de corpo. Mas, só isso? Talvez haja uma alma ai também? Tendo em vista dar movimento a esse corpo, no sentido de alegria, tristeza, decisão, perseverança. Quem sabe uma alma exterior e outra interior, no que tange a primeira abarcar coisas materiais, objetos, e a segunda incluir os bens interiores, como os gostos, os desejos."

Nível de ensino: Médio
Monitores Pibidianos: Éverton Luís Ferri e Danimar Bonai
Disciplina: Filosofia
Duração: 2 horas

Objetivo geral:
  •  Identificar a importância da arte (no caso: obras literárias) no que tange a transmissão de conhecimento;

Objetivos específicos:
  1. Propor um exercício auto reflexivo acerca dos apegos materiais e papeis que cada um exerce perante as outras pessoas;
  2. Refletir sobre o conceito "alma interior" citado por Machado de Assis; 
  3. Perceber a importância:
  •   Do que cada um representa através das formas de expressão da alma exterior;
  •   De preservar um equilíbrio entre o que é alma interior e alma exterior;


    METODOLOGIA

1º passo: Inicialmente uma apresentação do projeto de oficinas literárias e um pequeno questionamento que levará o público a um debate sobre a relação entre literatura e filosofia, ou no caso de insucesso os professores farão uma breve explicação dessa relação.

O que a filosofia tem a ver com a Literatura?

 Como diz Wittgenstein “o mundo é linguagem” e tanto a filosofia quanto a literatura fazem uso desta ferramenta para expressar algo. A diferença entre elas é que a filosofia tenta explicar um conceito, uma ideia e a literatura é uma narrativa que muitas vezes leva os seus interlocutores a refletirem sobre conceitos e ideias, de modo a não ter necessariamente um compromisso na construção de uma teoria explicativa sobre um problema.
 Platão, um grande filósofo da antiguidade se enquadraria perfeitamente tanto como literário, como filósofo. Nietzsche com seus aforismos e poemas, Rousseau e Sartre foram autores de romances. E do outro lado temos Thomas Mann e Machado de Assis.
 Outra diferença entre elas é o “como” se lê uma obra filosófica e uma obra literária. Normalmente ao realizar uma leitura filosófica é preciso reler várias vezes o mesmo parágrafo e muitas delas através de comentadores. Por sua vez com obras literárias não se há essa necessidade, outrossim, isso não significa dizer que obras literárias são mais fáceis.
 É necessário muita criatividade e um grande teor artístico para transformar conceitos filosóficos em obras literárias e vice-versa, buscar os conceitos dentro de narrativas literárias.
 As narrativas artísticas dos autores literários dão um gosto, um sabor a mais nas leituras, tornam mais interessantes de certa forma, por tirarem aquela parte dos sistemas filosóficos que é cansativa. A busca da compreensão dos conceitos e a sua veracidade.
 Quando usada a linguagem mais artística, cabe ao leitor realizar suas interpretações e deixar-se levar pelas ideias e sentimentos que existem ali na obra. Já os sistemas filosóficos exigem um raciocínio mais lógico, elaborado e justificado, que não se deixa levar por qualquer tipo de interpretação se não aquela que o autor permite.

2º passo: Na sequência será feito uma exposição da obra literária “O Espelho” de Machado de Assis com as possíveis interpretações dos apresentadores;

Obra (síntese)

“O alferes eliminou o homem”. (p. 93). Esta frase é central para entender o conto e para pensar a dualidade alma-corpo, alma exterior e alma interior, aparência, identidade, que Machado de Assis aborda durante o texto. Uma vez que dessa forma o autor marca a passagem de um homem simples para alguém que se considera importante a partir do momento em que se torna alferes, e, isso desperta nele um sentimento de elevação em detrimento de outras pessoas. Num dado momento seu bem estar só existe se estão lhe bajulando, caso contrário permanece triste e bravo. No conto isso ganha o nome de “alma exterior”, caracterizada pelas coisas externas que o sujeito possui, em que pese Jacobina, o nome do personagem principal, tende a se tornar apenas isso com o findar do conto. Nesse sentido toda subjetividade possível que faz algo ser algo e não outra coisa se esvai.                                                                                        
 E por que a metáfora do espelho? Parece que o espelho se refere a uma forma de trabalhar com a ideia de dualidade, aparências, dar-se conta do que se é, ou ainda se ver como tal no momento em que se está defronte a ele. De outra forma isso se liga à metafísica, a identidade. O espelho também possui um sentido histórico por fazer referência ao Império de modo que mesmo velho era bom. Porém, isso só era válido no nível da aparência, pois, com efeito, numa análise real se dava o contrário. Em última instância é um conto que busca analisar o pensamento humano, por meio de suas atitudes, seu jeito de ser e apreciar os bens, sejam materiais ou valorativos. E como isso se liga a formação da identidade humana, quais os critérios escolhidos para viver, agir.

3° passo: No terceiro momento (atividade de sensibilização) será iniciado um questionamento sobre a opinião dos estudantes a respeito do que foi apresentado e como isso se relaciona com a vida de cada um, através das seguintes atividades:

Atividade 1: Os estudantes irão escrever em uma folha em branco os aspectos e características de suas próprias almas (o objetivo aqui é levar os estudantes a uma auto reflexão a respeito da visão que cada um tem acerca de sua alma interior/exterior). Após isso, entregarão os papéis aos apresentadores que serão lidos para que a turma tente identificar de quem se trata. Os colegas poderão acrescentar aspectos e características que eles identificam nos colegas a respeito.

Atividade 2: Nessa parte pediremos aos estudantes para tirarem uma foto de si visando que percebam como são visualmente. A partir daí eles devem escrever como imaginam que seja sua alma exterior.

Atividade 3: Esta atividade teria como objetivo que os alunos formassem duplas, de preferência com alguém que tenham menos intimidade. Será solicitado que esbocem um desenho da pessoa escolhida enquanto está desenha a si mesmo. (Resumindo a atividade: serão feitos dois desenhos por pessoa um de si mesma e um do outro, para que seja feita uma comparação de como cada um se vê em comparação com a visão do outro em relação a si).

Apresentação da obra (2° passo):

Em uma noite quatro ou cinco cavalheiros discutiam/debatiam questões metafísicas, um tanto difíceis de serem debatidas com qualquer pessoa pelo teor transcendental que muitas vezes leva o debate a impasses e fortes discussões.
O quinto cavalheiro não se expressava da mesma forma que os outros quatro. Pretendia sempre em seus comentários ser breve e evitar discussões e paradoxos. Sempre resmungava alguma concordância após os comentários dos outros.
Até que em certo momento da conversa um dos quatro cavalheiros indagou o quinto a expor sua opinião. Seu nome era Jacobina que negou-se a expor suas posições, mas propôs um relato sobre sua vida, contanto que os quatro cavalheiros não o questionassem em nenhum momento da história e apenas o ouvissem calados.
- Cada criatura humana traz duas almas consigo: “Uma que olha de dentro para fora, outro que olha de fora para dentro”...
- A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa – e assim também a polca, o voltarete (jogo de cartas), um livro, uma máquina, um par de botas, uma música, um tambor etc.
- A segunda alma consiste em transmitir vida, como a primeira, as duas completa o homem. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da sua existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira...

Observação¹:  (Bens materiais; Bens espirituais; Alma)
Interpretamos nessa passagem uma forma de expressar como as pessoas se apegam a objetos e coisas externas a elas, e por darem tanto valor a isto (o que nas palavras do autor significa “transmitir vida”) acabam se tornando dependentes, em alguns casos essa dependência significa, ou melhor, vale a própria existência.

... Agora é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma. Muda de natureza e estado. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho, ou um cavalinho de pau e mais tarde uma provedoria de irmandade.
- Conheci uma senhora que muda de alma exterior cinco, seis vezes em um ano. Durante a estação lírica é a ópera, cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: Um concerto, um baile de cassino, a rua do ouvidor, Petrópolis etc.
- “Esta senhora é irmã do diabo e se chama Legião”...

Observação²: (Cultura; Alma exterior)
Interpretamos nesta passagem, algo relacionado ao que hoje identificamos como cultura, onde no passar de um só ano através da mídia e das tradições culturais é canalizado uma grande quantidade de energia e valor a alguma fonte de cultura, que é identificada pelo autor como alma exterior. Deriva da transmissão de energia/vida que esta “senhora” chamada “Legião” se auto estimula a fazer.

... Jacobina começou a contar o seu relato particular sobre uma dessas trocas de sua alma exterior. Conta aos cavalheiros uma história de quando tinha 25 anos de idade e era um jovem rapaz pobre, que acabará de ser nomeado alferes da guarda nacional. E como a partir daí começou a ser invejado por alguns e aclamado por outros, de uma maneira extrema teve uma mudança drástica em relação a sua existência.
Em certo dia uma de suas tias, cujo nome Marcolina que morava em um sítio isolado e que também era viúva do capitão Peçanha, pediu a Jacobina que fosse passar um mês com ela no seu sítio.
Já no sítio, Jacobina era chamado de Sr. Alferes por todos os lados, recebia os melhores lugares da casa tanto para dormir quanto para jantar, e estava o tempo todo recebendo elogios de sua tia.
Um certo dia Marcolina deu-lhe um espelho muito antigo mas de um valor exuberante, e afirmava que o Sr. Alferes merecia muito mais. Jacobina tenta, nessa parte da história, demonstrar aos seus ouvintes, como essas mudanças de tratamentos, carinhos, atenções e elogios fizeram nele, que ainda jovem possuía uma mocidade que acabará potencializando uma forte transformação.
- “O alferes eliminou o homem”.
- Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se, mas não tardou que a primitiva cedesse à outra, ficou-me uma parte mínima de humanidade.
- Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os cumprimentos exagerados.
No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.
Um certo dia, sua tia Marcolina recebeu a notícia de que uma de suas filhas estava em seu leito doente e beirando a morte, entretanto ela morava a cinco léguas dali. Adeus sobrinho! Adeus alferes! Era uma mão extremosa, e logo armou uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela e ao Sr. Alferes que tomasse conta do sítio.
- Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão.
- Alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa e a consciência mais débil.
Até os escravos que ali no sítio restavam, fugiram.
- Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes.
- Depois de ter se passado uma semana minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram tão compridos, nunca o sol abrasou a Terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala cuja pêndula, feria-me a alma interior. A noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando. Dormindo era outra coisa. O sono dava-me alívio. O sono eliminava a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior.
- Desde que ficará só, não olhara uma só vez para o espelho não era abstenção deliberada, não tinha motivos, era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo naquela casa solitária.
Até que passado algum tempo, por algum impulso repentino, Jacobina resolveu olhar para o espelho justamente para se ver em dois.
- Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo, não me estampou a figura nítida, mas vaga, esfumada, difusa, sombra da sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições, assim devia ter sido. Mas tal não foi a mesma sensação. Então tive medo. Atribuí o fenômeno a excitação nervosa em que andava, receei ficar mais tempo e enlouquecer.
- Foi então depois de muito sofrimento que me lembrei de vestir a farda de alferes. O vidro reproduziu então a figura integral; Nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. E assim pude passar mais seis dias de solidão sem sentir...

Conclusão: (Valor em si/por analogia; Subjetividade)
Nas últimas falas interpretamos que, ao se ver fardado de alferes, Jacobina não só se via, mas também, via sua tia Marcolina e as outras pessoas que o elogiavam antes. E dessa forma conseguia agora compreender a realidade que estava enxergando. Antes disso, quando só tinha sua alma interior, sofria, pois a realidade não fazia sentido, as coisas não estavam certas. O sofrimento levou-o ao medo e se não fosse pela estratégia de fardar, o levaria a loucura.
Analogamente a reflexão deste texto leva seus interlocutores a reconhecerem os próprios apegos externos a si, sem os quais a vida não tem sentido, e deixa claro que tanto a sanidade mental quanto a segurança e o conforto material só existem graças a alma exterior.

Provedoria de irmandade = Alguém que dirige uma irmandade;
Alferes = Patente do exército no Brasil imperial e colonial;
Opressão = Sensação desagradável de falta de ar, de sufocamento, de abafamento. Sujeição imposta à força, coação, diminuição acentuada do vigor.
Débil = Que não está na plenitude de sua condição ou potencial – pouco empenho e ânimo;
Abstenção = Ato de privar-se; 

Ao final da oficina será retomada a questão: É possível produzir conhecimento através de obras literárias?

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